A fila que crescia para dentro
Quando a fila do mercado vira um mundo paralelo e morar nela parece mais fácil do que encarar a vida lá fora.
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Parece exagero, mas no mercado aqui da esquina instalaram uma nova tecnologia: a fila inteligente.
A proposta era revolucionária: adaptar o tempo de espera ao nível de pressa de cada cliente.
Na prática? Um experimento cruel.
Quanto mais apressado, mais lenta a fila.
Era como se os sensores captassem batimentos cardíacos, ímpetos de ansiedade, talvez até aquele olhar que mede impacientemente quantas pessoas ainda faltam.
E puniam. Sem aviso. Sem misericórdia.
As pessoas começaram a notar.
— Essa fila não anda.
— Já era assim?
— Acho que estão com pouco funcionário hoje.
Mas não era isso.
A fila não crescia pra trás. Crescia pra dentro.
Foi quando começaram os primeiros sinais. Um homem montou uma cadeira de praia entre os corredores. Uma senhora levou uma muda de samambaia, “só pra dar um aconchego”. Abriram uma barraquinha de pastel entre os refrigerantes e o setor de rações. As pessoas não só aceitavam esperar, elas começavam a construir vidas ali.
Casais se formaram na seção de frios.
Crianças nasceram em frente ao caixa 5.
Tinha escola, padaria, biblioteca de doações espontâneas e até um curso de Excel ministrado por um rapaz do caixa 3.
A fila virou cidade.
E depois virou país.
Com constituição, hino e feriado próprio: o Dia do Cliente sem Pressa.
As pessoas esqueciam o que tinham ido comprar. Esqueciam o que era “lá fora”. Porque lá fora começou a parecer estranho, corrido, sem propósito.
Até que um homem — um tal de Cláudio, vendedor de castanhas — conseguiu sair. Ninguém sabe como.
Dizem que ele parou de sentir pressa.
Virou fumaça, atravessou o sensor e, pronto, estava de volta ao estacionamento.
Mas ele não reconhecia mais nada.
Os carros pareciam barulhentos demais. As pessoas andavam rápido demais. Tudo era cinza e impaciente.
Tentou contar o que tinha vivido, mas riram.
Tentou voltar… mas não conseguiu mais achar a entrada da fila.
Hoje, dizem que ele vive sozinho, parado diante do portão do mercado, oferecendo castanhas a quem passa.
E perguntando, sempre em voz baixa:
— Você tem pressa?

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