O relógio que se adiantava só para atrapalhar

Pontual, sim. Mas só no relógio. Uma crônica sobre viver adiantado demais, tanto emocionalmente, como cronologicamente e, às vezes, espiritualmente também.

Ele era pontual.
Certinho. Rígido.
Do tipo que chegava cinco minutos antes só pra poder aproveitar o atraso dos outros com um leve ar de superioridade moral.

Mas seu relógio… não colaborava.

De uns tempos pra cá, começou a se adiantar sozinho.
Dez minutos. Depois quinze. Depois trinta e dois.
Atrasado ele nunca esteve.
Mas sempre adiantado para o momento errado.

Chegava nas reuniões antes do prédio existir.
Pegava ônibus que ainda estavam em planejamento pela prefeitura.
Desejava “feliz aniversário” antes mesmo da pessoa nascer. Uma vez chegou a parabenizar um bebê que ainda estava na barriga.
A mãe achou fofo.
O pai achou esquisito.

No início, achou que era defeito.
Levou ao relojoeiro.
O especialista tirou os ponteiros, soprou, sacudiu e disse:
— O relógio tá com ansiedade crônica.
Recomendei meditação.
O tic-tac virou “ommmmmmm”.

Mas nada resolveu.
Comprou um digital.
Ele acelerou sozinho.
Passou a exibir horários como “16:92” e “agora não, tô ocupado”.

Tentou usar o celular.
Mas o relógio do celular era sincronizado com o relógio interno dele, este que também estava apressado.

Foi ao médico.
Ao terapeuta.
Ao monge do bairro.
Nada.

Aceitou que vivia num fuso emocional alternativo.
Era sempre o primeiro a sofrer por algo que ainda não aconteceu.
Primeiro a se preocupar, primeiro a se arrepender, primeiro a planejar conversas que seriam interrompidas no segundo “oi”.

Começou a chegar ao cinema dias antes da estreia.
Teve que fingir que era funcionário pra não ser retirado.

Recebeu spoilers de livros que ainda não tinham sido escritos. Uma editora até ligou pedindo explicações.

Disse que era vidente de enredo.
Mentira. Era só adiantado demais.

Um dia, acordou às 5h da manhã.
Não porque tinha compromisso.
Mas porque o relógio sonhou que teria.
Levantou, escovou os dentes, trocou de roupa e ficou esperando um e-mail que só ia chegar no ano seguinte.

Hoje em dia, já nem tenta entender.

Quando alguém pergunta as horas, ele responde:
— Trinta e dois minutos adiantado. Mas atrasado pra mim mesmo.

E segue.
Vivendo no futuro, tropeçando no presente, e tomando bronca por esbarrar em coisas que ainda não aconteceram.

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