Quando a ficção resgata o que a história preferiu enterrar
Poucas histórias conseguem ser tão literárias e, ao mesmo tempo, tão politicamente urgentes como a de Tituba. Em vez de repetir o que já foi contado sobre os julgamentos de Salem, Maryse Condé decide reescrever o que nunca nos foi revelado. E faz isso com coragem, ironia e uma escrita que é ao mesmo tempo quente e afiada. Esse livro não só me marcou, ele me remexeu por dentro.
“Eu, Tituba. Bruxa Negra de Salem” não tenta ser uma biografia precisa ou um tratado histórico. A autora toma para si o direito de fabular, de preencher os silêncios com carne, memória e magia. E é justamente aí que o livro se agiganta. Tituba não é só uma personagem trágica de um episódio conhecido da história americana. Ela é o retrato cru de tudo o que a sociedade tentou apagar: uma mulher negra, escravizada, curandeira, que ousou existir fora das margens.
A personagem que virou símbolo do que não pode mais ser silenciado
A leitura me envolveu de um jeito quase ritualístico. A Tituba criada por Maryse Condé é viva, sensível, contraditória, humana até o osso. Uma mulher feita de perdas e resistências, que ama, que sofre, que se decepciona, mas não abaixa a cabeça. Mesmo diante de traições, abusos e prisões, ela preserva sua fé na ancestralidade, nos espíritos e no que ainda pode ser reconstruído.
O livro tem passagens de uma delicadeza brutal. Em alguns momentos, ri alto. Em outros, fechei os olhos tentando absorver o peso das dores que estavam sendo descritas. Mas o mais impactante é como tudo isso é feito com leveza narrativa. Não falo de suavidade, mas de ritmo. A autora não nos deixa soltar a mão da Tituba nem por um capítulo.
A presença do realismo mágico é sutil, mas poderosa. As visões, os feitiços, os toques espirituais nunca tiram o pé da realidade. Eles expandem o entendimento da dor e da força da personagem. E a escrita da Condé, com seus cortes secos e respiros poéticos, constrói um equilíbrio quase perfeito entre denúncia e lirismo.
Essa leitura foi uma indicação da minha amiga Luiza Rauen, e que indicação. É um daqueles livros que não dá pra só recomendar, dá vontade de implorar: leia. Não só pelo que ele conta, mas por como ele nos transforma. “Eu, Tituba” é uma reparação poética, uma carta de raiva e ternura escrita à margem da história oficial. E um lembrete de que a literatura, às vezes, é o único lugar onde a justiça encontra espaço.

Estilo: Realismo Fantástico
Nota da Leitura:
★ ★ ★ ★ ★
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