O bairro onde todo mundo falava 'bom dia' mas ninguém se conhecia
Sorrisos, acenos e um muro invisível entre todos os vizinhos
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Era a vizinhança mais simpática da cidade. Gente educada, sorriso fácil, gentileza cronometrada. Bom dia pra cá, boa tarde pra lá, mas ninguém sabia o nome de ninguém. Nem o cachorro da esquina tinha dono fixo. Um dia descobriram que o bairro era parte de um experimento social secreto. O nome do projeto? “Cordialidade Tóxica”.
A premissa era simples: testar até onde o ser humano conseguiria manter a fachada da civilidade sem criar nenhum laço real. Os moradores recebiam pontos por cada aceno de cabeça, cada elogio vazio sobre o tempo, cada aperto de mão com risadinha protocolar. Nada de perguntas pessoais. Nada de ajudar com mudanças ou saber o nome do filho do outro. Nada de demonstrar interesse genuíno.
Foi um sucesso. Nunca houve tanta boa convivência sem amizade. As festas eram impecáveis, com risadas calculadas e bolo de cenoura suficiente pra todos, mas ninguém ficava depois do parabéns. Os vizinhos se cumprimentavam diariamente como se fosse sempre a primeira vez. E, de certo modo, era mesmo.
Os correios entregavam cartas sem sobrenome. O grupo de WhatsApp era só silêncio e emojis. Uma moradora, Dona Marli, tentou quebrar o protocolo e convidou os vizinhos pra um café. Ninguém apareceu. No dia seguinte, ela foi gentilmente transferida para outro bairro mais “coerente com seus afetos”.
A fachada era mantida com esmero. Jardins impecáveis, sacadas floridas, sorrisos em série.
O único crime registrado foi quando alguém deixou um bilhete dizendo “estou aqui se precisar”.
A comoção foi tanta que o bilhete virou caso de segurança nacional.
O projeto foi encerrado após um morador ter uma crise de identidade ao confundir o próprio nome com o do aplicativo de previsão do tempo. Desde então, o bairro continua lá, firme e forte. Mais calmo do que nunca. Mais distante do que sempre.
Dizem que, se você passar por lá e desejar bom dia, será prontamente respondido. Mas se tentar puxar papo, vai notar um silêncio tão ensurdecedor quanto cortês.

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