A consulta que arrancou mais do que um dente
Uma crônica sobre cáries, julgamentos silenciosos e boletos anestesiados
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Ele só queria resolver uma cárie.
Um buraquinho.
Minúsculo.
Daqueles que o YouTube garante que dá pra curar com óleo de coco e pensamento positivo.
Mas, como era adulto responsável, ligou, marcou e compareceu.
Recepcionista fria como molde de gesso.
Revistas velhas.
A trilha sonora era um mix de Enya com broca de alta rotação ao fundo.
Ambiente ideal para perder a fé na humanidade.
Chamaram seu nome como se estivessem convocando alguém para a forca.
Entrou.
A cadeira reclinou sozinha.
A luz veio direto nos olhos.
A partir dali, ele deixou de ser um sujeito com CPF e virou apenas uma arcada para ser julgada.
Enquanto enfiava espelhos e ganchos que pareciam ferramentas de açougueiro, o dentista soltou a pergunta mais incômoda da tarde: se ele andava estressado.
Ele tentou responder, mas só conseguiu emitir um barulho semelhante a um pato afogado.
Isso foi interpretado como um sim.
O dentista então começou a palestra motivacional.
Explicou que cada dente diz muito sobre a pessoa.
Que o canino revela instinto.
O pré-molar, ansiedade reprimida.
E aquele dente do juízo, coitado, só confirma que ele fez terapia por Zoom e largou no terceiro mês.
Enquanto a broca girava como um tornado nervoso, veio o sermão:
Você mente quando diz que usa fio dental.
Seu esmalte está emocionalmente comprometido.s
"Seu tártaro tem mais camadas do que sua existência"
Em algum momento, ele perdeu a noção de tempo.
Começou a rever memórias da infância, repensar escolhas de carreira e jurou ter visto sua avó falecida sentada na bancada de utensílios.
Quando terminou, o dentista disse que precisaria fazer um plano de tratamento em sete etapas.
Cada etapa correspondia a um ano fiscal.
O orçamento cabia em um único envelope, mas ocupava o espaço emocional de um financiamento imobiliário.
Na saída, a recepcionista perguntou se ele queria agendar o retorno.
Ele disse que sim, claro.
Para 2086.
Voltou pra casa sem a cárie resolvida.
Mas com uma crise existencial, três boletos parcelados e um sentimento novo:
Medo de escovar os dentes errado e ser julgado pelo espelho.

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