A tela que nunca ficava satisfeita

Quando a pintura resolve se pintar sozinha.

O pintor jurava que estava no caminho certo. Misturava as cores com paciência, espalhava os traços com cuidado, dava passos para trás para observar a composição. Mas, sempre que voltava a encarar a tela, algo tinha mudado.

O azul parecia reclamar de ser azul. O vermelho se expandia sozinho, como se tivesse ciúme de ocupar pouco espaço. O verde desaparecia devagar, escorrendo para fora das margens. A tela não queria ser pintada. Queria discutir.

No primeiro dia, o artista tentou impor autoridade. Camadas de tinta, pinceladas firmes, retoques. No segundo, aceitou o diálogo. Perguntava o que a tela queria ser. Recebia respostas disfarçadas em manchas e borrões. No terceiro, desistiu. Já não pintava. Apenas assistia.

Logo as telas começaram a impor regras. Recusavam flores, se desfaziam em paisagens sem horizonte, transformavam retratos em vultos. O pintor virou espectador da própria obra.

Os críticos começaram a elogiar a ousadia, a inovação, a potência invisível daquelas pinturas que pareciam nascer sozinhas. O artista sorria em silêncio. No fundo, sabia que não era ele quem assinava.

Era a tela.
Sempre foi a tela.

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