Desde 1987
Uma crônica de reconciliação com a cidade natal, entre silêncios, ironias climáticas e memórias de outros cantos
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Curitiba nunca me pediu desculpas.
E, sinceramente, eu também nunca pedi nada.
Nasci nela numa madrugada muito gelada de junho, às 2h30, nas Mercês.
Sou curitibano da gema, do tipo que conhece a cidade pelo cheiro da geada e pelo silêncio das padarias abrindo.
Fui criado entre calçadas mal-humoradas, pinheiros de guarda e o frio que entrava em casa sem nem tirar os sapatos.
Achava normal ver o céu em três tons diferentes antes do café da manhã.
Mas como toda relação com raízes demais, eu precisei sair.
Com 21 anos, fui parar em Brisbane.
Austrália, cangurus, coalas, parques milimetricamente perfeitos.
Uma cidade que parecia manual de instruções.
Me senti um curitibano desajeitado tentando aprender a andar descalço sem parecer suspeito.
Lá descobri que a vida podia ser ensolarada e que ao mesmo tempo também podia ser gentil.
Voltei.
Fiquei um pouco. Casei e tive filho.
Depois fui embora de novo.
Fui pro Rio já mais velho, com mais de 30.
Passei 3 anos por lá.
Lá todo mundo fala alto, olha nos olhos, pergunta como está e ainda espera resposta.
Lá eu virei “o curitibano”.
Uma espécie de Pokémon raro: calado, educado demais e com tendências a desaparecer no meio da conversa.
Mas aí, como quem reencontra uma velha carta no fundo da gaveta, voltei.
Um ano e meio de volta a Curitiba.
Demorei pra entender a nova cidade.
Ou talvez a cidade tenha sido sempre a mesma, e fui eu quem se reinventou.
Foram semanas até lembrar como cruzar a rua sem encarar ninguém.
Meses pra aceitar que o céu muda mais de humor que gente com transtorno bipolar em estado de mania (entendo bem disso).
Foi quase um ano pra perceber que a cidade continuava aqui, me esperando do jeitinho dela: quieta, fria, cruel, mas fiel.
Outro dia, achei um bilhete escondido num dos meus livros antigos:
“Querido Jean do futuro, um dia você vai entender que a cidade nunca foi fria. Você é que tava com pouco casaco.”
Curitiba nunca me pediu desculpas.
E, sinceramente, hoje eu também não quero mais nada.
Só que ela continue sendo minha. Ranzinza, imprevisível, cheia de silêncios.
Minha cidade.

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