As desventuras do Seu Lourival
#04
Seu Lourival e a Encomenda de Ninguém
Mais uma desventura de Seu Lourival. Desta vez, a entrega misteriosa de uma segunda-feira viva transforma sua rotina em um ciclo eterno de começos sem vontade.
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Bateram à porta às oito e doze da manhã. Um entregador, com cara de quem já tinha visto coisa demais na vida, esticou a caixa e disse:
“Assina aqui. Pedido do senhor.”
Seu Lourival, que não lembrava de ter comprado nada, nem de ter aprendido a usar o aplicativo, franziu a testa. Mas como todo brasileiro que se preze, a desconfiança durou só até o barulho do estilete.
Dentro da caixa, havia uma segunda-feira.
Inteira. Lacrada. Viva.
Tinha despertador tocando, trânsito parado, meia dúzia de compromissos pendurados, e um cheirinho leve de fracasso matinal. Assim que ele abriu a tampa, o ar da casa ficou ligeiramente mais pesado.
Tentou devolver. O entregador já tinha evaporado.
Tentou fingir que não era dele. A segunda grudou nele como boleto esquecido na gaveta.
Tentou ignorar. Mas a segunda começou a circular pela casa. Entrou no banheiro, bagunçou a agenda, travou o alarme, enguiçou o chuveiro elétrico.
"Passou o dia com a sensação de que tudo estava começando, mas sem nenhuma vontade de continuar."
Passou o dia com a sensação de que tudo estava começando, mas sem nenhuma vontade de continuar. Às duas da tarde, já estava exausto sem ter feito nada.
Ligou na central de trocas. Explicou que já tinha uma segunda-feira em casa, velha, cansada, funcional. Não queria duas. A atendente respondeu com voz robótica que estava no contrato. Brinde surpresa para clientes inativos.
Desde então, toda semana, outra segunda chega. Às vezes vem com chuva. Outras, com dor de cabeça. Algumas vêm mais calmas, mas todas carregam aquele mesmo gosto de reinício forçado.
Seu Lourival tentou escondê-las no armário da lavanderia. Tentou doá-las no grupo do bairro. Tentou queimar uma delas na churrasqueira.
Não adiantou. Segunda-feira é tipo promessa de político. Sempre volta, mesmo quando ninguém pediu.

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