As desventuras do Seu Lourival
#02
Seu Lourival e a Torrada de Sete Vidas
Uma torrada, sete quedas e um mistério que nem o micro-ondas quis esquentar.
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Na terça-feira, Seu Lourival decidiu tomar café com calma. Um luxo raro na rotina dele, sempre corrida mesmo sem ter para onde ir. Pegou a última fatia de pão do pacote, aquela solitária, meio torta, com marca de dedão do supermercado. Passou manteiga com delicadeza. Acomodou o pão na torradeira como quem deita um bebê no berço.
Esperou.
Quando a torrada pulou, veio com aquele leve aroma de carvão e esperança. Pegou com cuidado, apoiou no prato. Deu um passo em direção à mesa. E foi nesse movimento coreografado, nesse balé matinal, que a torrada escorregou da mão e caiu. Manteiga pra baixo. Naturalmente.
Seu Lourival xingou em volume de missa. Pegou o pão, assoprou. Não era homem de desperdiçar nada. Mas no exato momento em que ia morder, a torrada pulou de novo. Dessa vez da mão pro chinelo. De novo, manteiga no chão.
Na terceira vez, caiu do prato.
Na quarta, do encosto do sofá.
Na quinta, da beirada da pia.
Na sexta, da tábua de passar.
Na sétima, caiu sozinha. Ninguém viu como.
Começou a desconfiar. Uma torrada cair sete vezes no mesmo dia, sempre do lado errado, não era mais azar. Era manifestação.
“Claramente o pão tinha feito um pacto. Ou tinha alma própria. Ou era um gato.”
Tentou comer assim mesmo, entre preces e proteções espirituais. Mas na oitava tentativa, a torrada não caiu. Ela saltou. Com impulso próprio. Bateu na parede, quicou no chão, e parou em pé. Sim, em pé.
Seu Lourival ficou paralisado.
Pensou em exorcismo.
Pesquisou “pães demoníacos” no buscador.
Ligou pra neta, que disse pra gravar e subir no TikTok.
Ele não sabia o que era TikTok, achava que era nome de remédio pra labirintite.
No fim, decidiu guardar a torrada.
Envolveu em duas camadas de papel alumínio, colocou dentro de um pote hermético e etiquetou:
“OBJETO INSTÁVEL. NÃO MEXER. POSSUI VONTADE PRÓPRIA.”
Guardou no armário das panelas, entre a cuscuzeira e a batedeira que nunca usou.
Desde então, evita comer pão.
Passou a tomar só café preto.
Mas toda vez que entra na cozinha, ouve um ploft abafado, vindo do armário.
Não abre.
Finge que não ouve.
E segue a vida como quem aprendeu que alguns mistérios são melhor deixados quentinhos, envoltos em manteiga e silêncio.

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