A servidão que nunca acaba
Solitária é um daqueles livros que a gente fecha, mas continua ouvindo. Eliane Alves Cruz não grita, não esperneia, não dramatiza. Ela apenas conta. E isso é o que torna sua escrita tão potente. A história gira em torno de Nice e Mabel, duas mulheres negras que dedicaram a vida ao trabalho doméstico, servindo gerações de uma mesma família branca. A narrativa escancara aquilo que muita gente ainda insiste em ignorar: a permanência da estrutura escravocrata nos lares brasileiros.
O que mais me tocou é como Eliane costura a história com um fio de afeto que, ao mesmo tempo, acolhe e prende. Não se trata apenas da violência direta, mas da violência sutil, cotidiana, travestida de carinho. Do “ela é como se fosse da família” que mascara a ausência de direitos, a sobrecarga, o silenciamento. Nice e Mabel são personagens que carregam o peso de muitas mulheres reais.
Um passado que não passou
O passado da história é presente na narrativa. E isso não só pelo enredo em si, mas pela forma como ele é construído. A escrita da autora tem um ritmo que lembra conversa de quintal, com pausas, lembranças, sentimentos guardados entre uma fala e outra. Parece que a gente está ouvindo Nice contar sua própria vida. E isso dá ao livro uma força emocional absurda.
Há uma dimensão quase fantasmagórica em Solitária, como se a casa onde as duas mulheres trabalham estivesse assombrada pelas memórias de um Brasil que se recusa a morrer. Mas não são fantasmas sobrenaturais: são os fantasmas da história, da injustiça, da omissão.
“Entre o afeto e a solidão”
A relação entre Nice e Mabel é marcada por silências. Elas são companheiras de jornada, mas também são solitárias em suas dores. O título do livro carrega esse paradoxo: a solidão que se compartilha. Eliane Alves Cruz escreve com delicadeza, mas com a firmeza de quem sabe que certas coisas precisam ser ditas, mesmo que doa.
Gostei muito da leitura. Me fez pensar em como a literatura pode ser uma forma de escuta. De escutar o que foi calado por tanto tempo. Solitária não é um livro fácil, mas é necessário. E bonito. E triste. E verdadeiro.

Estilo: Literatura Nacional
Nota da Leitura:
★ ★ ★ ☆ ☆
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