Tudo que é sólido desmancha no ar
Uma crônica sobre sofás que evaporam e a instabilidade leve do cotidiano moderno
- Publicado em
- por Jean Guimarães

Marx disse isso sobre o capitalismo.
Bauman reciclou a ideia na modernidade líquida.
Mas foi no meu apartamento que a frase finalmente fez sentido.
Foi num domingo de sol que o sofá sumiu.
Estava lá no canto da sala, como sempre.
Bege, meio torto, cheio de história e farelos de bolacha.
Mas sumiu.
Evaporou.
Puf.
No início, achei que fosse distração.
Talvez tivesse ido parar no quarto, na cozinha ou, quem sabe, dado um pulinho até o mercado.
Mas não.
O sofá havia se desmanchado no ar.
Literalmente.
“Tudo que era firme, fixo e confiável começou a se desfazer. Inclusive minha paciência.”
Na terça, foi à geladeira.
Na quarta, a estante de livros.
Na quinta, uma tia-avó.
Tudo o que era sólido na minha casa. Móveis, memórias, móveis com memórias, tudo começou a se dissolver como algodão-doce em boca de criança.
Pedi ajuda.
A vizinha sugeriu feng shui.
Um amigo falou em uma praga hereditária.
Minha terapeuta disse que era simbólico.
Aparentemente, tudo que eu construí estava perdendo sentido.
Virei uma metáfora ambulante e nem percebi.
No domingo seguinte, o chão deu uma fraquejada.
Tive que andar na pontinha dos pés pra não cair no abismo que se abriu no corredor.
Na segunda, resolvi encarar a realidade.
Fui até o espelho.
Olhei bem fundo nos olhos de quem restava ali.
E, sem aviso, o espelho também evaporou.
Fiquei sem sofá, sem geladeira, sem passado e sem reflexo.
Mas ainda com café, porque, felizmente, ideias absurdas não evaporam tão fácil.
Então sentei no ar, preparei um café imaginário e escrevi essa crônica.
Antes que o papel e a caneta sumissem também.

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